Para embalar o soninho do domingo e começar bem a semana, uma Cronicazinha de Balaio. Depois me diga: você conhece alguma Berenice assim? Boa leitura.
— Alô. Oi Demerval, tudo bem?
Tá certo. Mas eu ligo lá? Tá bom. Obrigada viu.
Que bom, capaz que a Clara já leu os contos e quer me dizer
o que achou. Será que ela gostou? Ai ai ai e criança fala mesmo, não tá nem aí
pra paçoca. Aff! nunca pensei que fosse ficar tão ansiosa.
— Oi Demerval, é o 34, não é? Liguei e ninguém atende.
Ah, deve ser. Bom, vou esperar, então. Boa noite querido.
Desliguei o interfone e fui me ocupar com as pequenas
tarefas de quem acabava de chegar em casa, depois de passar boa parte do sábado
lá na EACH. Só não conseguia parar de pensar no que teria achado a Clara, minha
mais nova avaliadora de textos. Tomei banho, comi um sanduíche de queijo com
uma deliciosa taça de vinho e me pus, preguiçosamente, em frente a televisão. A
sensação era de dever cumprido e de euforia pela possibilidade de conversar
sobre o novo conto com uma leitora de 10 anos. Conforme a taça era esvaziada, o
dia de trabalho ia se apagando e o desejo de saber sobre o texto tomava novos
contornos e novos tons. Mas nada do interfone tocar. O que tocou foi a
campainha – será que ela? Mas a mãe deveria interfonar antes, nera? Hummm já
não gostei dessa invasão.
— Quem é?
— Berenice! – quê?! Ah não, que que essa moça tá fazendo
aqui? Você não vai convidar pra entrar, vai? Não eu não quero, mas... Mas nada!
Anna Karenina. Você não a chamou, ela não avisou que vinha, nada de
educaçãozinha proforma. Mas, mas, que merda! Eu quase não conheço ninguém nesse
prédio. E vai continuar sem conhecer. Imagina se todo mundo aqui é assim?
— Boa noite. Como vai?
— Oi meu amor, tudo bem. Vim trazer uma comida, que eu
não sei se você gosta, mas minha mãe faz tão bem que você vai adorar, tenho
certeza – não recebe. Agradece e diz que não pode aceitar por causa.... por
causa da tua religião! Fala que tu é judia! É isso. Tá louca? A moça vem aqui
com toda gentileza e eu...
— Ah muito obrigada.
— Você não vai olhar o que é?
— Ah, devo? Ééééé... achei que.... deixa pra lá.
— É dobradinha, menina! Ouvi ontem você dizer que é do
Ceará. Como certeza você adora. Vocês chamam de panelada, não é? Minha mãe
também é cearense – eu te falei pra não aceitar. Só falta agora ela se convidar
pra comer contigo. Vai ser lindo tu passando mal só porque não sabe dizer não.
Coisa mais idiota. Não, ela não vai ser louca de fazer isso. Hã? Não duvido de
nada.
— Você gosta não gosta?
— Na verdade não, quer dizer, não muito, mas sua mãe deve
cozinhar muito bem.
— Cozinha mesmo. Mas que linda sua casa. Nossa, ela
parece bem maior que a minha! – tá vendo esse é o primeiro passo pra se
convidar pra entrar. Fala logo que você tá ocupada. Sim, bem ocupada, com a
televisão ligada e uma taça de vinho no braço do sofá. Ela vai sacar que é
mentira. Anna Karenina, Anna Ka re ni na, a mentira foi feita para ser usada
nessas ocasiões meu bem. Você ainda não aprendeu?
— Ah... muito obrigada. Eu gostei de como ficou. É, pois
é, eu tirei um dos quartos. Não, não conheço sua casa, não – se você não cortar
essa conversa agora, ela vai cruzar a soleira e aí fodeu! Não arreda um
milímetro!
Eu segurava o depósito plástico, ainda bem quente,
exalando o cheiro típico de panelada, sem me mover. Já a moça, coitada - quer
dizer, coitada de mim - se esgueirava tentando se livrar da minha imagem e espiar
a casa. Ainda bem que as luzes não estavam todas acesas, então não dava pra
discernir muitos detalhes. Só que o calor da comida começava a incomodar e eu
precisava colocar aquilo na bancada – não faça isso! Mas está me queimado! Uma
queimadurinha de nada, não vai fazer mal nenhum. Como não? Aguenta, aguenta
senão tu vai te arrepender. Inventa qualquer desculpe, mas fecha essa porta!
— Outra hora você vai lá em casa. Ah e o Reinon gostou
muito do livro que você deu pra ele. Ele adorou! Eu também.
— Que bom... ele é seu filho... Fico contente. Pode
deixar que outra hora eu passo lá sim.
— Você colocou aquecedor ou chuveiro elétrico?
— Ãh? Que? como assim? Ah... coloquei aquecedor.
— A gente colocou chuveiro. Você tá gostando?
— De quê? Ah claro, tô, tô sim – eu disse não disse? mas
eu te disse, eu te disse – Ô Berenice, querida, muito obrigada pela visita, mas
eu acabei de chegar do trabalho ainda tenho que fazer umas tarefas e não quero
dormir tarde. Se você me dá licença eu vou indo, quer dizer, vou ficando –
hummmm até que enfim aprendeu a mentir, heim! E não é que você mente bem,
filhinha! Até eu tô achando que a gente vai ter que trabalhar ainda hoje!
Hahahahaha.
— Claro, claro. Outra hora eu volto. Mas essa flor é de
verdade ou é de mentira?
— É de verdade.
— Posso ver?
— Qual? ah... essa é de mentira.
— Logo vi. Mas parece de verdade.
— É né? Pois é Berenice... eu realmente queria entrar.
Muito obrigada pela visita e pela panelada.
— Depois você me diz o que achou.
— Pode deixar. Boa noite.
— Linda essa flor. Depois você me diz onde comprou? Vou
querer uma igual!
— Boa noite. Digo, digo sim. Vou procurar o cartão,
porque agora eu não faço ideia de onde está. Tchau.
— Tchau meu bem. Linda sua casa. Mas parece de verdade
essa flor. Tem certeza que ...
— Tenho. Absoluta. Boa noite.
— Boa – meu deus, que mulher chata! Nunca menti tanto em
tão pouco tempo. E ainda vou ter que dá um jeito nessa panelada, heim? Aff!
Minha vontade era rebolar no mato com depósito e tudo! Ah não, experimenta!
Experimenta você! Ai Anna Karenina, tem horas que tu é tão antipática! que eu nem
sei como eu te aguento. Eu é que não sei como EU te aguento. Pois eu sei. Sem
essa Anninha aqui, meu bem, você não teria escapado nem da diarreia do primeiro
ano de vida. Engraçadinha! Diarreia é o que eu vou ter se comer isso aqui... não,
não vai ser agora que eu vou gostar de panelada. Experimenta, experimenta! Como
você é besta! Então pronto vamos fazer um brinde!
Troquei o refil da taça e fui pra minivrandinha assistir
o entardecer. No céu, já dava pra ver dois ou três pontinhos brilhantes. Seriam
de verdade ou de mentira? Que importa? Algum deles até poderia já nem existir e
sua luz ainda viajando. Seria uma luz de verdade ou uma estrela de mentira.
Ainda prefiro uma luz de verdade, embora em algum momento se possa fazer uso de
uma estrela de mentira. Mas com parcimônia, claro! – ah não, não é possível que
seja essa moça de novo!
— Alô. Oi Clara! Já? Não, não. Desocupadíssima. Quando?
Perfeito. Tô indo aí agora!
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